Beata Maria de Araújo
Daniel Walker
“Quando dei à beata Maria de Araújo a Sagrada Forma, logo que a depositei na sua boca, imediatamente transformou-se em porção de sangue, que uma parte ela engoliu, servindo-lhe de comunhão, e outra escorreu pela toalha, caindo algum no chão; eu não esperava e, vexado para continuar as confissões interrompidas, que eram muitas ainda, não prestei atenção e por isso não apreendi o fato na ocasião em que se deu; porém depois que depositei a âmbuIa no sacrário, e vou descendo, ela vem entender-se comigo cheia de aflição e vexame de morte, trazendo a toalha dobrada, para que não vissem, e levantava a mão esquerda, onde nas costas havia caído um pouco e corria um fio pelo braço. E ela com o temor de tocar com a outra mão naquele sangue, como certa de que era a mesma hóstia, conservava um certo equilíbrio para não gotejar sangue no chão”.
Foi assim que Padre Cícero descreveu para as autoridades eclesiásticas o fato extraordinário ocorrido no dia 1º de março de 1889, no então povoado de Juazeiro, interior do Ceará, o qual mudaria para sempre a sua vida e a da beata Maria de Araújo.
Inicialmente, vale a pena perguntar: Quem foi essa mulher? - O que ela fez para merecer tanto desprezo e depois tanta atenção dos estudiosos?
A resposta deve ser dada por etapas. Primeiramente, vamos saber quem foi Maria de Araújo.
Ela nasceu no dia 23 de maio de 1863, no então vilarejo de Juazeiro, conforme declarou quando prestou depoimento perante a Primeira Comissão de Inquérito nomeada pelo bispo D. Joaquim José Vieira para investigar os fatos extraordinários ocorridos em Juazeiro e seu nome completo é Maria Magdalena do Espírito Santo de Araújo, filha legítima de Antônio da Silva Araújo e de Ana Josefa do Sacramento.
Padre Alencar Peixoto descreve a beata Maria de Araújo com tintas picantes, apresentando-a conforme está no seu livro Joazeiro do Cariry, como sendo “um produto do cruzamento de duas raças desprezíveis, dando, portanto, uma hibridez horrível, uma monstruosidade feita mulher”.
Continuando, diz que ela é de “estatura regular, brunduzia, triste, vagarosa, entanguida, essencialmente cachética, porque tem como ascendentes uma série de cachéticos ou tuberculosos. A cabeça, que traz sempre descoberta, tem a configuração de um corredor de boi, escarnado. O cabelo nem é preto nem branco. Os olhos pequenos, e sem um raio sequer de Expressão que lhe ilumine o semblante, mexem-se histericamente nas falas de uma testa estreita e protuberante. O nariz irrompe dentre os olhos, sem base, e levantando-se, a pouco e pouco, alarga-se de asas chatas até os ossos molares, achamboirados, entupidos nas gelhentas bochechas cavas. Os beiços moles e relaxados deixam a descoberto em um dos cantos da cacóstoma boca, à competência com a pele cor de azeitona em estado de putrefação, denegridos, os dentes lanianos”. Quanta à hibridez moral, diz ele, ‘é uma alma soberanamente execrável’.
Decerto Padre Peixoto exagerou, pois ninguém pode ser tão feio assim. É claro que a beata Maria de Araújo, que muitos a tem como santa, não possui a formosura das santas européias que estamos acostumados a ver nas estampas. Mas também, descrita assim, Maria de Araújo não é gente, é uma figura teratológica, um monstro, uma aberração da natureza, tudo, menos pessoa humana. E aí ela já pode ser apontada como vítima de discriminação.
Segundo a educadora Maria Assunção Gonçalves, “Maria de Araújo viveu sempre muito pobre. Teve uma infância sofrida. Trabalhava e rezava muito. Era artesã. Fiava o algodão e fazia bonecas de pano para vender. Ensinava esse ofício a algumas meninas a mandado de Padre Cícero. À falta de outros serviços, saía com suas coleguinhas para uma olaria à margem do rio Salgadinho e ali trabalhava na contagem de tijolos, em troca de alguns vinténs. Como perdeu os pais muito cedo, foi morar, ainda menina, na casa de Padre Cícero, onde permaneceu até a condenação dos fenômenos chamados de milagres de Juazeiro.
Depois de punida pela Igreja, Maria de Araújo viveu como lavadeira, engomadeira e doceira, tirando desses trabalhos simples o seu sustento diário, evitando assim implorar a caridade alheia. Mas nunca deixou de receber de Padre Cícero ajuda e atenção.
Ela morreu no dia 17 de janeiro de 1914, quando estava em curso o movimento sedicioso de Juazeiro, ou Revolução de 1914, como é mais conhecida.
Não há dúvida: o fato mais polêmico da vida de Maria de Araújo foi o milagre, ou pretenso milagre, como querem muitos, descrito no começo deste trabalho.
Por causa dele, Maria de Araújo foi vítima, entre outras coisas:
- de preconceito racial e de gênero;
- da intransigência de seu bispo;
- da pena cruel de muitos escritores e historiadores que a difamaram sem antes procederem a um estudo mais aprofundado de sua via.
O bispo D. Joaquim Vieira, que nunca viu a hóstia se transformar em sangue na boca de Maria de Araújo, foi logo dizendo que o sangue além de ser dela, e não de Cristo, era nauseabundo e corrupto, e que ela era uma desequilibrada. E como se não bastasse, infligiu-lhe um rosário de martírios: mandou prendê-la - prender mesmo -, na Casa de Caridade do Crato, proibiu-a de falar sobre o assunto milagre e a ridicularizou publicamente.
O milagre foi o maior martírio da vida de Maria de Araújo, exatamente porque não foi considerado como tal pela Igreja. Mas a beata acreditou nele. Morreu acreditando que o sangue que jorrou de sua boca foi realmente o sangue de Jesus Cristo.
Por causa da punição sofrida pelo Padre Cícero, a qual proibia que ele falasse publicamente sobre o milagre, Maria de Araújo tornou-se uma figura praticamente apagada da história de Juazeiro. Durante muito tempo os livros publicados sobre Padre Cícero lhe davam pouca importância. Mas ultimamente ela passou a ser alvo de estudos mais aprofundados, graças à iniciativa de pioneirismo empreendida pela psicóloga Maria do Carmo Pagan Forti que tem uma dissertação de mestrado publicada sobre ela, intitulado Maria do Juazeiro, a beata do milagre (Editora Anna Blume, São Paulo, 1999)..
O trabalho de Maria do Carmo inovou principalmente quando procurou recuperar o papel político desempenhado por Maria de Araújo em Juazeiro e neste aspecto, diferentemente do que se dizia nas obras publicadas anteriormente, a beata aparece como mulher, deflagrando a disputa pelo poder, deslocando o lugar do poder, apoderando-se do lugar do poder, enfim, uma mulher ativa e atuante e não uma mera protagonista de um milagre desacreditado pela igreja.
Até mesmo a Igreja já mudou um pouco o seu comportamento. Hoje Maria de Araújo tem seu retrato dentro da Reitoria do Socorro foi sepultada e depois exumada, tendo seus restos mortas depois sepultados em local desconhecido. Na mesma Reitoria antes conhecida como Capela do Socorro, graças a uma iniciativa do seu Reitor, Padre Bosco Lima, ela é figura de um bonito vitral que embeleza aquele local sagrado. É como se ela estivesse sendo reabilitada, assim como já vem ocorrendo com o Padre Cícero.
E assim, com o passar dos tempos e por conta da nova ótica de observação desenvolvida pelos estúdios nos grandes centros acadêmicos do País, a Beata Maria de Araújo vai saindo da obscuridade histórica a que esteve relegada por tanto tempo e agora passa a ser o que realmente é: a figura feminina mais importante da história de Juazeiro do Norte.